Cosme e Damião

 

 

 

Dois morcegos…

Não é muito difícil. Basta um pouco de imaginação para entender…
Coisa boa da vida, essa tal de natureza, né?…
Imaginem só, uma fazendona bonita de grande… Lá em Minas Gerais…

Era um fim de tarde, do dia 27 de setembro…
Foi isso que me chamou mais a atenção: a coincidência da data e dos nomes. Cosme, Damião e um 27 de setembro.

O fato de serem morcegos era o de menos…
Um amigo meu, o William, já havia me explicado que não precisamos ter medo deles. Devemos sim protegê-los, por mais estranho que pareça.

De tantas que haviam, não lembro qual a longitude e a latitude daquela árvore…, só sei que era um papo entre eles… Dois morcegos…. Normal.

Já tinha escurecido, eu estava com frio e me preparava para retornar do passeio pela fazenda…

< Tive um estalo! >

Espere aí: dois bichos estavam falando… Normal?! Alguém disse: -Normal?!…
Fechei os olhos e me imaginei coruja: … fiquei quietinho, prestando a maior atenção…

Curiosidade mata, minha avó diria… Mas eu pensei: -Sou um homem ou um rato?…

Antes que o meu inconsciente saltasse em gargalhadas, tomei posição firme. Fiquei. Continuei quietinho…. Não muito convicto nem confiante na minha coragem…, mas fiquei…

Estava escuro, eu não os via… e torcia pela tal de recíproca.
O papo era claro, dava para entender….
Não eram os morcegos, em sua forma, que me intrigavam, e sim aquela estranha comunicação….

Eles não são cegos, meu amigo Wiliam também já tinha me advertido…. Porém, falar?… Isso sim, me amedrontava…

Era algo diferente. A voz não saía mas a comunicação, de tão perceptível, parecia audível…

De alguma forma, eu estava ouvindo. Juro!…

O medo cedeu lugar a um estado de contemplação…
Para garantir…, deixei de ser coruja, fiquei invisível e mergulhei de corpo e alma naquele mundo…

Fiquei tomado pela emoção com a fala de um deles, que dizia assim:

– Sabe Cosme, o que eu estou lembrando agora?…
Daquela vez que a gente resolveu conhecer as árvores que nossos pais sobrevoavam…  Eles tinham razão, … aquelas frutas eram deliciosas… Doce puro…. Saborosas. Não sei como nossos primos comem insetos… Flores, ainda vai, mas insetos? “Irc”!…

< Fez-se uma pausa, que trouxe um tom diferente na falação >…

…. Aquele menino não fez por mal, Cosme… Morre de medo da nossa forma não muito favorável… dessa imagem que nos impuseram através dos tempos… lendas enganosas onde aparecemos como vilões.

… Mas esta injustiça um dia terá fim, meu irmão…. Tem gente tentando mudar isso…. Sim, eu vi…

Graças ao trabalho de uns poucos, que aos poucos vão se transformando em muitos, nossa imagem está mudando…

Talvez demore, sabe?… Talvez somente gerações futuras entenderão a nossa importância e perderão o medo…

… Ele não fez por mal, meu irmão. É apenas um menino…
que foi mal informado por um pai mal informado, que aprendeu com um avô mal informado…  que pensam que morcego é coisa ruim…  que se alimentam do sangue humano, o que a gente sabe que não é verdade…

Somente alguns de nós se alimentam de sangue (três das quase mil espécies). Mesmo assim, de outros bichos…

…. Já não tenho certeza se você está me ouvindo agora, Cosme.  Mas alguém deve estar…   E quando você chegar no outro lado, te dirá que eu, Damião, teu irmão, me despedi…   E que irei sentir sua falta por aqui…

… <ali, parou a fala>…
Damião esperou cair mais uma lágrima…. Percebeu que a molecada já havia ido embora e levado consigo a vara que matara Cosme…

Fechou as asas de seu irmãozinho mais novo…, pediu a presença dos bons espíritos…, deu-lhe o último beijo e bateu em retirada ao encontro do seu destino…

Eu fiquei ainda ali, parado por uns instantes…
…. Fiquei pensando no ser humano…, no equilíbrio da natureza…, nos desencontros…, na nossa ignorância acerca das coisas…, dos falsos medos…. Na necessidade de união e cuidados, mútuos, independente da espécie…

Quis voar, ao encontro daquele morceguinho que se ia triste…  Mas voar, eu não sabia…    ainda.

 

 

# f i m #

Por Lula Moura
(criado em setembro de 2002 – publicado nesse site em 27/09/2019)

15 respostas para “Cosme e Damião”

  1. Somos tão desconstruídos de sabedoria, principalmente dos seres que nos provocam medo, isso porque escutamos muito e pesquisamos pouco. Ah… se todos aprendêssemos com eles, seríamos mais animais e menos seres humanos. Creio que haveria muito mais amor, companheirismo e amizade. Beijos no coração amigo.

    1. Coisa boa, Mônica! Obrigado pelo carinho. É por aí… Importante tentar enxergar outros ângulos, driblar as aparências. E buscar se informar é fundamental. Esse texto é uma provocação de um amigo querido que, junto comigo, escrevia num site de literatura amadora chamado Anjos de Prata. Ele tinha um site (não sei se ainda existe) que explicava tudo sobre os morcegos, inclusive a importância para o equilíbrio ecológico. Na verdade, os bichinho estão mais para heróis do que vilões. Um dia ele pediu para todos do grupo escreverem um texto sobre morcegos… e o meu foi esse. Lá se vão 15 anos…

      1. Excelente! Amei! Posso compartilhar? Digno de nota…digo: de cpt…fico na rede embaixo das árvores e os morcegos dão rasante na minha cabeça… acho que acostumei… mas ainda dá um medinho de cairem no meu colo Parabéns pelo texto e pela sensibilidade das analogias. Bj

        1. Oi, Leny Bello querida! Claro que pode compartilhar, minha amiga. Obrigado pelo carinho e pelas palavras sempre gentis… Eu adoro esse meu texto…rs “Esse texto foi escrito atendendo um pedido de um amigo que, junto comigo, escrevia num site de literatura amadora chamado Anjos de Prata. Ele tinha um site (não sei se ainda existe) que explicava tudo sobre os morcegos, inclusive a importância para o equilíbrio ecológico. Na verdade, os bichinho estão mais para heróis do que vilões. Um dia ele pediu para todos do grupo escreverem um texto sobre morcegos… e o meu foi esse. Lá se vão 15 anos…”…. Bjo no seu coraçãozão, Leny!!!

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